21 janeiro 2024

A beleza dos rituais na vida


A minha avó faleceu no final de 2023, faltavam 3 dias para o fim de um ano de muitas perdas. A morte dela foi mais uma, menos inesperada que as restantes, ela já tinha 97 anos e a velhice já tinha tomado conta dela, deixando apenas vestígios do seu vigor de outros tempos.

A morte dela levou à reunião de pessoas que nem sempre estão juntas. Não esteve muito tempo em câmara-ardente, mas durante o tempo em que a velámos fizemos todos parte de um ritual, cheio de pequenos e grandes detalhes religiosos. Eu não sou religiosa, mas entendo a importância de rituais e vivendo numa sociedade bastante religiosa faço parte deles, concordando ou não. E isso levou-me a uma dualidade de sentimentos. Estava ali pela minha avó, era o que ela queria, que se rezasse o terço pela sua alma, que se benzesse o seu corpo com água benta, que a recordássemos de uma forma contida, como a vida dela fora. Mas ao mesmo tempo, rezar não me faz sentido a não ser pelo estado meditativo em que nos deixa a repetição da mesma lenga-lenga. Senti-me como uma observadora e vi muita beleza na tristeza desses dias. 

Foram dias de céu nublado, alguma chuva e o arco íris apareceu no final do funeral. Acredito que muitas memórias assolaram as cabeças das pessoas que mais amaram a minha avó. Os rituais juntam-nos, fazem-nos sentir parte de alguma coisa maior, da nossa tribo, fazem-nos perceber que não estamos sozinhos e que temos algo em comum com as restantes pessoas. Todos os entes queridos, possivelmente, sentiram que uma parte sua foi a enterrar com a minha avó. Eu, pelo menos senti. Fiquei orfã de avós. Um bocadinho da minha infância foi a enterrar com ela. Há partes de mim que só ela conheceu, enquanto avó e que não partilhei com mais ninguém. Ela amou-me e fez-me sentir amada de uma forma que mais ninguém fez. Foi a única pessoa com quem, em idade adulta, rezei o terço, foi com ela que dei passeios para apanhar malvas ou simplesmente pelo prazer de dar passeios, o pouco que sei de hortas foi com ela que aprendi. São tantas memórias e é tanto de mim que devo a ela. 

Quando em 2008, o meu avô faleceu (o primeiro dos 4) e eu não pude estar presente em toda a cerimónia fúnebre (desde o velório ao funeral) demorei muito tempo a processar e a chegar ao momento do luto em que nos contentamos com a realidade. Parte foi porque foi a primeira morte tão próxima na minha vida, mas grande parte foi por não ter participado dos rituais em família junto com as outras pessoas que podiam entender a minha dor. Não vivi o fim do meu avô e o meu cérebro não processou. Somos seres sociais e os rituais são o guia de como nos devemos comportar na nossa tribo para podermos sentir-nos integrados, mas também para, individualmente, irmos ultrapassando os diferentes momentos que vamos encarando. 

Falo aqui em rituais relacionados com a morte, mas isso aplica-se à vida no geral. Pensemos: por padrão da sociedade ou do nosso seio familiar, no geral as pessoas sabem que percurso escolar fazer - estudar para acabar a escolaridade obrigatória, depois para alguns seguir para a universidade. No entanto, assim que acabamos a escolaridade muitas vezes começamos a sentir-nos perdidos, porque, se antes o percurso era claro - casamento, filhos, trabalho para sempre - hoje em dia não sabemos muito bem por onde seguir. E isso leva-nos a crises existenciais complexas, que não têm apenas a ver com rituais, mas que talvez tenham um bocadinho. Antes pertencíamos àquela tribo, àquela fração da sociedade onde crescíamos e mantínhamo-nos por lá. Hoje em dia, o sentido de comunidade mudou, estamos muito focados no indivíduo e nas necessidades de cada um, portanto os rituais deixaram de ter o seu papel nas vidas de todos. Fazendo com que seja mais fácil nos sentirmos perdidos, desconectados (da comunidade mas também de quem somos) e em busca de um bem estar individual egocêntrico, o que me parece contraproducente. Não tenho respostas para estas crises, que eu mesma atravesso amiúde. Tenho perguntas e reflexões. Estou de luto, triste, com raiva. E pelo que parece a raiva é o que leva ao ímpeto da criação. Por isso, aqui estou, em busca da criação, da beleza na raiva e na tristeza. 

Para mim, é a beleza que conduz a vida e não o sonho!


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